A POESIA E O INCONSCIENTE FREUDIANO
Lina Alvares
A poesia não se fecha numa definição
A poesia é efeito de sentido
É abertura, equívoco,
… reinvenção.
(Mario Quintana)
A poesia está além da Psicanálise. Como disse Lacan, ela diz o indizível do que a Psicanálise busca.
Maria Lúcia Martins
O interesse de Freud pelo inconsciente está presente desde o começo de sua pesquisa psicanalítica. Oliveira (2005) aponta que em 1º. de abril de 1915, Freud escreveu a Lou Andreas-Salomé:
“Os próximos números do Journal irão conter um tipo de síntese psicológica de várias de minhas idéias sobre três temas: o instinto e suas vicissitudes, a repressão e o inconsciente — incompleto, como tudo o que faço, porém não sem algo de novo. O artigo sobre inconsciente em particular conterá uma nova definição do termo, que é de fato o equivalente a uma agnostização.”
Oliveira (2005) coloca que este neologismo, baseado no alemão Agnoszierung, sugere um caráter religioso ou sacro, marcado por uma forte crença, e ligado, de antemão, ao inconsciente. Freud pretende propor uma nova definição, desconhecida.
Os editores da Edição Standard, por exemplo, escrevem na introdução ao texto
de 1915 sobre o inconsciente:
“Desde o início, e em seu ambiente mais próximo, não pode ter havido grande resistência a essa idéia. Seus professores diretos — Meynert, por exemplo —, na medida em que se interessavam pela psicologia, orientavam-se principalmente pelos conceitos de J. F. Herbart (1776-1841), e parece que um livro de texto contendo os princípios herbartianos era usado na escola secundária freqüentada por Freud.” (FREUD, 1915 p.186)
A teoria do inconsciente tem então, aponta Oliveira (2005), com toda a certeza, fundamentos clínicos. Se nesta anotação é a primeira vez que este termo aparece no trabalho de Freud, é importante indicar que aparece seguindo seus próprios questionamentos em suas anotações anteriores, sem dúvida uma das anotações mais longas na história da literatura. Freud retoma integralmente este questionamento em seu artigo de 1915, não só uma, mas diversas vezes, como podemos ver.
Trata-se da questão da dupla inscrição ou do duplo registro das representações e dos afetos, bem como do destino destas inscrições ou registros, segundo Oliveira (2005). Freud sublinha o Spaltung da consciência, a constituição das representações pré-conscientes e sua passagem de um registro a outro. O conceito de repressão ainda não foi elaborado, mas Freud sublinha as ‘associações falsas’, que percorrem certas representações da consciência.
Oliveira (2005) aponta que Freud, em sua conceituação dá uma atenção clínica, e até auto-analítica, do conceito de inconsciente, embora:
“Contudo, deve-se esclarecer de imediato que o interesse de Freud por essa suposição jamais foi de natureza filosófica — embora, sem dúvida, problemas filosóficos se encontrassem inevitavelmente próximos. Seu interesse era prático. Achava que, sem fazer essa suposição, era incapaz de explicar ou mesmo descrever a grande variedade de fenômenos com que se defrontava. Por outro lado, procedendo assim, encontrou o caminho aberto para uma região imensamente fértil em novos conhecimentos.” (FREUD, 1915 p.186)
Para elucidar melhor o encaminhamento que queremos dar a este artigo, complementamos com outro apontamento de Freud:
“A essência do processo de repressão não esta em por fim, em destruir a idéia que representa um instinto, mas em evitar que se torne consciente e que quando isso acontece, esta se encontra em um estado “inconsciente” e que, embora, neste estado, ela pode produzir efeitos, incluindo até alguns que finalmente atingem a consciência.
Como devemos chegar a um conhecimento do inconsciente? Certamente, só o conhecemos como algo consciente, depois que ele sofreu transformação ou tradução para algo consciente”. (FREUD, 1915 p. 171)
Roudinesco&Plon (1998), citam a observação feita por Freud em que aponta o recalque como o pilar em que repousa o edifício da psicanálise, ou, em outras palavras, seu elemento mais essencial, apresentando-o ainda, em sua carta a Fliess, de 6 de dezembro de 1896, como uma denominação clínica da “falta de tradução” de alguns materiais que não têm acesso à consciência. A razão dessa carência sendo “sempre a produção de desprazer que resultaria de uma tradução; é como se esse desprazer perturbasse o pensamento, entravando o processo de tradução”.
Sabemos, contudo, que o conteúdo recalcado retorna de forma disfarçada, manifestando-se sob a forma de sintomas, sonhos, esquecimentos e outros atos falhos, como formações de compromisso em defesa do eu e de sua realidade manifesta.
A realidade, para a psicanálise, segundo Vogelaar (2009), é a realidade psíquica e não a realidade factual. A linguagem, para a Psicanálise, não é protótipo do mundo, mas um novo mundo, inconsciente, subjetivo, do próprio homem, simbólico.
Vogelaar (2009) assegura ainda que essa compreensão se aplica à palavra poética. A linguagem, na poesia, rompe a sua qualidade comunicativa, deixando de servir apenas ao objetivo de representar a realidade, para expandi-la, transfigurá-la, transgredi-la. A palavra é múltipla e múltiplo o homem que a pronuncia e é inscrito por ela.
O inconsciente é o intraduzível que o ser humano se esforça por traduzir e o poeta é quem melhor “se traduz” ou traduz o humano em palavras, aponta Vogelaar (2009). O homem é poeta e na poesia é servo da linguagem, é veículo na qual ela se manifesta, incorpora, torna-se realidade.
No método criado pela Psicanálise, na associação livre, as palavras emergem como na poesia, rompendo o real, pulsionalizadas, vibrando. E o psicanalista, nos diz Vogelaar (2009), como o poeta, é servo de seu ofício, instrumento da linguagem, xamã que inicia o sujeito nas artimanhas do inconsciente. O mundo é lido na Psicanálise através de uma forma própria, numa linguagem para iniciados, a linguagem do inconsciente.
E sendo assim e dentre tantos, priorizei o poeta Ferreira Gullar e sua poesia Traduzir-se por encontrar nesta as associações possíveis para fazer um fechamento do aprendido.
Vamos a ela:
Traduzir-se
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte e ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?
O poema mostra o conflito entre “uma parte” e “outra parte” e apresenta uma questão a ser respondida diante da possibilidade de se “traduzir uma parte na outra parte”.
Ferreira Gullar, poeta maranhense, vê seu processo poético desencadeado pelo espanto. Essa outra parte que “se espanta” e que “se sabe de repente” e que deve ter, portanto, ligação com o processo analítico quando “uma parte de mim” representante do eu consciente, o “que pesa e pondera” se depara com sua outra parte, manifestada em um retorno do recalcado que é o “fundo sem fundo” resultante das irrupções das formações do inconsciente, levando à “estranheza e solidão”.
O saber-se de si, “de repente”, decorrendo da linguagem, da possibilidade de falar do até então insabido, ato em que se pode desarticular o que estava em operação: o “é todo mundo” e “multidão” do igual massificado e o “almoça e janta” dos automatismos de nosso cotidiano.
Quando a outra parte “delira” causa na primeira uma desarticulação, um “é só vertigem” que leva à angústia de não se saber, já sendo.
E o que fazer diante do desassossego, a não ser a opção dada pelo poeta, de se fazer “arte”? A arte de escapar da “questão de vida ou morte”, por meio da criação, admitindo o novo ou o velho de, e, em nós mesmos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, S. O Inconsciente in: A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XIV, p.165-181.
OLIVEIRA, L. E. P. O inconsciente freudiano entre Lou-Andréas Salomé e Victor Tausk. Rio de Janeiro: Revista Ágora, 2005. Vol.VIII n°. 2 Jul/Dez.
Disponível em www.scielo.br/pdf/agora/v8n2/a05v8n2.pdf . Acesso em 05/06/2011
ROUDINESCO, E. & PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1998, p. 647-649.
VOGELAAR, R. Psicanálise e poesia, Centro de Estudos Psicanalíticos, 2009