Dumbo e sua busca, o falo

Nesse momento de “revival” da Disney, de fazer o movimento oposto ao que sempre trabalhou, ou seja, lançar filmes com atores humanos, ao contrário de desenhos animados, que têm toda uma linguagem e simbolismo próprios, uma dessas remontagens foi a de Dumbo, filme lançado inicialmente em 1941. Não assisti a versão atual, que, ao que me contaram, tem toda uma história alterada. Talvez isso tenha sido feito para que, no movimento do “politicamente mais correto”, do não apresentar a vida tão nua e crua para um público infantil (como se este não tivesse a capacidade de simbolizar e interpretar as vicissitudes da vida, e tivesse que lidar com uma realidade mais colorida, mais fácil, e claro, menos real, como se o lado mais negro e mal do ser humano tivesse que ser encoberto) por sua verdadeira história ser muito triste, ou mesmo inconveniente. Afinal, Dumbo era um elefante que sofreu maus tratos, que foi isolado de sua mãe, que foi ridicularizado pelos elefantes e humanos, entre outros. Esse personagem, essa história, não me encantou tanto na minha infância, mas depois que me tornei mãe e passei a assisti-lo com meus filhos, tornou-se um de meus preferidos. Talvez, justamente, por mostrar “a vida como ela é”.

Todos passamos pelo Complexo de Édipo, fundamental e estruturante, tornando-nos o que somos em nossos modos de viver, com nossos mecanismos de defesa próprios, numa estrutura resultante (neurótica, perversa ou psicótica) que nos permite fazer frente e conduzir nossa vida de acordo com ela, sempre no intuito de diminuição de sofrimento psíquico, com suas características próprias de recalque, negação, foraclusão, conforme cada um. Não nos lembramos desse momento, não analisamos esse momento quando estávamos na nossa infância, mas é claro que houve muita dor, muito sofrimento, muito que tivemos que abrir mão para nos encaixar na sociedade e internalizar a lei, criarmos nosso superego (no caso dos neuróticos, os “mais normais”). A Disney sempre apresentou de forma recorrente essas passagens em vários de seus filmes, no Rei Leão, Simba vê seu pai ser assassinado, em Bambi ele vê sua mãe morrer no incêndio, as princesas são sempre órfãs, seja de pai, seja de mãe, em Toy Story os bonecos são abandonados pelo seu dono em determinado momento. São filmes que nos emocionam, que até podem nos fazer chorar, mas que de forma lúdica, retratam essa passagem a que todos nós humanos somos submetidos, a morte da mãe toda, a morte do narcisismo primário, a importância dos pais (ou figuras paternais) na constituição do sujeito. Dumbo não foge à regra. Refiro-me, claro, à sua versão original, de desenho animado, de 1941.

Pus-me a pensar a seu respeito, o pequeno elefante, que tanto bullying (para usar algo bastante atual) sofre pelos outros, e que tão jovem tem sua mãe interditada de seu convívio, por ter orelhas grandes, diferentes de um elefante padrão. Nos momentos atuais, de um retorno, ou melhor, revisitação de preconceitos, de dificuldade de tantos em lidar com o diferente, seja por uma homofobia, velada ou não, um racismo, de pele ou religião que a tantos mal entendidos e violências levam, esse poderia ser um ponto a ser analisado no filme: Como lidar com o preconceito? Como ser fiel à você mesmo, numa sociedade que trata o “fora do padrão” como algo a ser rechaçado, como uma ameaça? Mas não foi esse o caminho que escolhi.

Sempre me encantei, na verdade, com o simbolismo da pena de Dumbo. A pena mágica que o faz voar, que o torna tão poderoso e o faz mudar de uma posição de refugo, do não poder ser visto, do “inconvivível”, do inconveniente, daquele que é vergonha para a raça, àquele a que todos admiram. Foi interessante, pois, esse elemento no filme sempre foi muito significativo para mim, e revendo o filme agora percebo que sua participação, a da pena, nele é até pequena, muito poucas cenas, duas na verdade, a que ela funciona como instrumento mágico e a que ele a perde e percebe que consegue voar graças a si mesmo (as suas orelhas tão grandes) e não porque a segura com a tromba, quando ele a perde num vôo no circo. Tomando a liberdade de interpretar pelo simbolismo, a perda da pena, no sentido de pesar (pena e pesar são sinônimos), é o que o faz tornar-se corajoso, aceitando sua diferença representada pelas grandes orelhas em não mais algo de que se tenha dó de possuir, mas de força. Um pesar que defende, que vem a seu encontro como objeto de salvação, que o livra de seu penar em sua vida.

Nesse caminho comecei a pensar sobre essa história, e a revê-la. Há muito elementos interessantes que ilustram a trajetória que tivemos nesse semestre, quando vimos o Complexo de Édipo, a estruturação, constituição do sujeito, o Nome do Pai, o Ideal de Eu e o Eu Ideal, a função materna e a função paterna,  as saídas que os seres humanos apresentam em seus sintomas, mecanismos de defesa, para vivermos em sociedade, a fragilidade humana, que não vive sem o outro que o constitua, com quem estamos sempre nos relacionando. A figura do Dumbo, tão bonitinha, com quem acabamos nos identificando pela via do sofrimento, nos apegando a ele, demonstra toda a fragilidade do ser humano criança que tem que se deparar com as perdas, as interdições, o interdito, a sociedade e suas leis e formas de organização que impõe para que haja um convívio permitido e possível.

Dumbo é um ser desejado, sua mãe, a Sra Jumbo, aguarda ansiosamente a chegada da cegonha trazendo seu filho, com toda sua expectativa de ser mãe, de receber alguém que será sua continuidade, seu objeto de amor, sua dedicação total. Certamente com todo o seu imaginário de um elefante que irá completá-la, ser feliz, ser perfeito. Mas ele veio com um problema, e muito visível, orelhas enormes que não são normais à espécie. Como lidar com essa ferida narcísica de receber alguém assim? Dumbo passa a ser motivo de chacota pelas demais elefantes do circo, daí o nome que dão a ele, pois dumb em inglês é um adjetivo pejorativo para aquele que é o bobo, o idiota. Mas, felizmente isso não abala seu relacionamento e amor com aquele filho. A Sra Jumbo libidiniza-o, cumpre sua função materna, cuidando dele, nomeando suas necessidades, acolhendo, protegendo. É um lindo momento de completude para Dumbo, e de simbiose com a mãe, que passa a ser a referência para ele, seu primeiro objeto de amor. Sua mãe lhe confere a identidade e molda-lhe. Isso no desenho animado é mostrado de forma bastante doce, esse momento de narcisismo primário de Dumbo, sendo vivido em sua forma mais completa, permitindo que haja esse investimento libidinal nele mesmo. Ele é “sua majestade o bebê”, mesmo contra os olhares discriminatórios dos demais, que para Dumbo ainda não são presentes, não são perceptíveis, afinal, ele tem sua mãe, ele está completo, ele é amado. Até esse momento vive numa plenitude, no seu Eu Ideal, sem ainda a instauração da falta, que se dá no segundo momento, quando percebe, pelos outros elefantes a seu redor que não é aquele ser perfeito que lia no olhar de sua mãe, quando começa a ser maltratado e zombado pelos demais. É o momento em que entra o terceiro elemento e cria sua ferida narcísica. É o nome do pai. A Sra Jumbo, ao defende-lo, justamente, contra esse terceiro elemento que aparece na sua relação, é presa e afastada de seu filho, por causa da violência com que o faz. Dumbo perde seu lugar privilegiado nessa simbiose, e passa a ser a vergonha do circo, a vergonha da raça, passa a vivenciar a falta, a incompletude e a busca por seu ideal de eu, o seu vir a ser, buscando então o que lhe falta para poder pertencer a esse ideal.

Fazendo uma leitura da história de Dumbo pelo viés psicanalítico da passagem pelo complexo de Édipo, podemos identificar claramente seus três tempos. O primeiro, logo após seu nascimento e no começo de sua vida, o de completude, o do ser o falo de sua mãe, o de relação Dumbo e sua mãe e apenas os dois. É o momento de seu narcisismo primário, interrompido pela interdição do outro, via os demais elefantes, que o percebem como diferente e o interditam de sua mãe, que é presa e afastada brusca e brutamente dele. Insere-se sua incompletude, sua busca do objeto perdido, sua perda do conforto narcísico, seu segundo tempo do Édipo. Dumbo torna-se desejante, ele não é mais o falo. Essa falta inserida necessita ser preenchida e essa busca pelo perdido inicia-se. O não passa a fazer parte de sua vida.

O terceiro momento instaura-se então. Dumbo não é mais o falo, mas pode transformar-se e voltar a ser. Ele depara-se com sua incapacidade, as orelhas, que o tornam essa aberração e que a cultura representada pelos demais elefantes e pelo público que frequenta o circo tanto zombam dele. Há a inserção da lei, o diferente não pode pertencer ao grupo, nesse caso. Seu superego é instaurado.

O elefantinho é então isolado e se vê sozinho, até que um outro personagem, representado pelo ratinho Timóteo, temido pelos elefantes mas carinhoso com Dumbo, aparece então e o guia nessa busca de uma nova forma de condução de sua vida. Já que não pode pertencer a cultura dessa maneira, procuremos uma outra saída, procuremos um falo que lhe dê esse poder de inserção, um falo simbólico, que o proteja e o reinsira na vida desejada, de circo, junto aos demais, não mais representado por alguém, como sua mãe o fora, mas já no campo simbólico.

Seu desejo é ser igual aos outros de sua espécie, fazer o que eles fazem, ser bem visto, bem quisto, mas após o processo de identificação e percepção da diferença, podemos inferir que seu desejo é ser elefante (a lei) mas, dada sua diferença, ter poder, ou falo, através da sua diferença. É a separação do eu ideal e do ideal de eu de Dumbo, a instauração de seu superego, e sua passagem pelo complexo de Édipo.

Esse momento do filme mostra Timóteo exercendo uma importante função, a de guia, a função paterna para Dumbo. Nesse trilhar do elefantinho com seu amigo ratinho, há a descoberta, por esse último personagem, da possibilidade de Dumbo voar. Um poder, um diferencial que ele não percebe, não sabe que possui. É o momento em que Timóteo, numa manobra muito inteligente e interessante, tem a ideia de dar ao elefante a pena arrancada de um pássaro amigo e “dar esse falo”, esse poder (mágico nesse caso) a ele. Funciona. Dumbo, ao portar esse significante percebe-se poderoso, percebe que pode realizar algo que os demais elefantes não podem, voar.

Logo, ele continua a ser elefante, mas agora ele pode voltar a pertencer a sua vida desejada, ao circo, fazendo sua apresentação de elefante voador, pois tem em sua tromba esse poder. Mas esse falo é apenas idealizado, é externo. No momento mais bonito do desenho, Dumbo ao jogar-se de uma altura enorme durante a apresentação circense perde essa pena. É um momento de pequeno pânico, mas que finaliza de forma muito representativa. Ele internaliza o falo, ao perceber que, no fundo, seu poder não vinha dessa pena, mas sim de suas enormes orelhas! A meu ver é aquele instante em que seu objeto de vergonha, aquele que inseriu a falta, pelo vexame de não ser igual aos demais, transforma-se em seu falo, em seu objeto de pertencimento, que pode lhe permitir inserir-se novamente, que tem a possibilidade de o completar. Objeto esse que é seu, que é único, que lhe representa, que ele identifica como tal.

Podemos então ler que Dumbo passou, efetivamente pelos três momentos do Complexo de Édipo, tornou-se faltante, vive essa falta, dado que jamais será como os demais elefantes devido ao tamanho desproporcional de suas orelhas, sabe-se faltante. Instaurou-se nele também o recalque, percebe que nem todo o seu desejo lhe é permitido. Dumbo é um ser dividido pela proibição e pela tentação, pela proibição e sua pulsão, ele sabe que existem tabus que jamais serão revogáveis. Ele respeita os limites, ele respeita a lei. Dumbo é um neurótico. Seu corpo, criado pelo recalque (como em todos os neuróticos) é bastante simbolizado nesse jogo. A construção de seu corpo, limitado, que reage, foi realizada pela via da dor, da diferenciação deste com relação aos demais. Ele também carrega a culpa – característica típica do neurótico – por ter sido a causa da prisão de sua mãe, por ser o objeto que trouxe a vergonha a sua espécie (inicialmente), por não ser o eu ideal de sua mãe (e buscar seu ideal de eu constantemente). Como todo neurótico, Dumbo vive a culpa.

Dumbo foi libidinado, foi castrado, passou pela identificação, pela construção de sua identidade, pela culpa, por todas os momentos do complexo de Édipo, e por se tratar de um filme, um desenho animado, da Disney, tem um final feliz, de reconhecimento e apreciação por todos, de uma valorização sua, e por consequência, de sua mãe também (além de seu “pai”, o amigo ratinho Timóteo). Não sabemos como será, ou seria, sua vida de neurótico daquele momento em diante, como se daria sua adolescência, momento de revivência do complexo de Édipo, tampouco sua vida adulta. Como todo neurótico, certamente, sofreria, mas se iria sofrer bullying dos amigos adolescentes, se iria arranjar uma companheira (ou um companheiro), quais seriam as vicissitudes que encontraria ao longo de sua vida, não temos como prever ou especular, afinal todo conto animado tem um final feliz. E até esse ponto ele é, realmente, feliz e bem resolvido.

Enfim, Dumbo consegue perceber que não é o EU IDEAL, mas consegue ser um bom IDEAL DE EU”.

  1. Referências Bibliográficas


FREUD, S. O Ego e o Id. (1923). Vol.XIX. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006.

FREUD, S. Totem e tabú. (1913). Vol.XIII. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006.

FREUD, S. Três ensaios sobre a sexualidade. (1901-1905). Vol.VII. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006.


BLEICHMAR, H. Introdução ao estudo das perversões. (1984). Capítulos de 1 a 5. São Paulo: Editora Artes Médicas, 1984.

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