Acordei Barata – uma leitura de A Metamorfose de Kafta

Letícia Monteiro de Souza Rangel

Acordei barata

Recentemente reli “A metamorfose” de Franz Kafka. Gregor, o personagem principal, acorda metamorfoseado em barata, um gigantesco inseto. Uma transformação sem explicação, talvez uma metáfora, ou um delírio.  O que leva um sujeito a se sentir, a se ver, a ser transformado em um inseto tão desprezível e nojento como uma barata? Fiquei pensando o que a psicanalise diria a esse respeito. Claro que é um exercício, uma análise, uma intepretação muito pessoal minha. Somente o Kafka saberia dizer o que quis transmitir com sua historia e a sua verdade por trás dela. Mas me darei a liberdade de inferir meu ponto de vista, uma leitura minha a esse respeito.

Gregor “acorda” uma barata, depois de dormir, talvez sonhar, aí se percebe metamorfoseado nesse inseto. O sonho é um investimento libidinal em si mesmo, no próprio sujeito, uma elaboração da vida psíquica que direciona a libido a investimento em objeto interno. O narcisismo primário, fundante, originário é um investimento libidinal no próprio corpo, o autoerotismo. Uma fixação aqui leva a esquizofrenia, onde não há direcionamento objetal da libido, característica do narcisismo secundário. Podemos fazer uma ligação desse momento de acordar com um não voltar ao narcisismo secundário do personagem, que até então havia sido uma pessoa “normal”. Ele fica fixado nessa fantasia alucinatória, que no caso, é ser uma barata. Há um retorno daquilo que já deveria estar internamente representado e elaborado mas que vem em forma de delírio e alucinação, no caso. Não há como diagnosticar Gregor como psicótico, dado que o que acompanhamos no livro é um fragmento de sua vida e nos faltaria dados e informações para tal, mas podemos fazer uma leitura de sua metamorfose e pelo que ele passa após sua transformação pela ótica narcísica psicótica. Ele, assim como Narciso, fica preso em si mesmo, e morre.

 Segundo o Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis: “Fundamentalmente, é numa perturbação primária da relação libidinal com a realidade que a teoria psicanalítica vê o denominador comum das psicoses,  onde a maioria dos sintomas manifestos (particularmente construção delirante) são tentativas de restauração de laço objetal”. Podemos então partir desse pressuposto que Gregor, está se metarmofoseando e transformando-se numa barata em um delírio seu, já que isso é impossível na realidade.

Enquanto que na neurose a perda de realidade é secundária, pela predominância da fantasia sobre a realidade, dado que há o recalque, na psicose esta é a própria doença. “O delírio aparece como uma peça que é posta no lugar, em que, inicialmente, produziu-se uma rasgadura na relação do eu com o mundo externo”. (KAUFMANN) A neurose portanto é o resultado de um conflito entre o eu e o id, e a psicose um distúrbio equivalente entre o eu e o mundo externo. Há, na psicose, um desligamento do eu com a realidade externa. Há um afastamento dos objetos na esquizofrenia. “A libido afastada do mundo externo é dirigida para o ego e assim dá margem a uma atitude que pode ser denominada de narcisismo” (FREUD, 1914). No caso de Gregor, há algo no mundo externo tão ameaçador que ele acaba por se desconectar a tal ponto que deixa de ser humano, não pertencendo mais a esse mundo, já que “torna-se barata” e não mais pessoa em seu delírio. Há a ruptura que deixa o ego sob o domínio do id na psicose reconstruindo uma nova realidade de acordo com os desejos do id, tornar-se um inseto.

Um homem que se transforma em uma barata… Sua vida era cansativa, sem prazer, descontente. Era alguém que servia aos outros mas que não se sentia amado, não se sentia feliz e não sentia prazer em sua vida, que, portanto se metamorfoseou nesse bicho. Ele teria tido essa capacidade de se transformar em outra coisa que não humano. Partindo dessa sua mudança de homem para inseto, podemos também relacionar essa atribuição desse “poder” de Gregor, à megalomania, conforme Freud descreve em Sobre o Narcisismo: Uma introdução “…uma superestima do poder de seus desejos e atos mentais a ‘onipotência de pensamentos’, uma crença na força taumatúrgica das palavras, e uma técnica para lidar com o mundo externo ‘mágica’ que parece ser uma aplicação lógica dessas premissas grandiosas”. Freud postula que a libido que foi afastada dos objetos externos na esquizofrenia “é dirigida para o ego e assim dá margem a uma atitude que pode ser denominada de narcisismo”. Logo, seguindo nessa direção de interpretação do personagem podemos pressupor que com toda a sua libido redirecionada a seu ego não houve uma passagem para a escolha objetal, não houve essa fronteira, esse limite que é determinado pelo recalque, gerando a fantasia e a internalização dos objetos. Dado que o objeto externo não foi investido internamente, não há essa inscrição, há o desligamento da realidade, e esse vivencia fantasmática é vivida no delírio, no caso, de ter se tornado uma barata. Esse investimento libidinal em si mesmo alimenta a onipotência de pensamento  alimentada pela megalomania, levando Gregor a magicamente ser, em seu mundo, transformado em barata. É uma vivencia de um delírio a céu aberto, diferentemente do neurótico que realiza tais feitos em pensamentos, em sonhos, não se desligando da realidade como na psicose ocorre.  

Enquanto na neurose o investimento do objeto persiste no sistema inconsciente, apesar do recalcamento, ou antes, em consequência deste, na esquizofrenia ao contrário, a libido que foi retirada não procura um novo objeto, mas reflui para o eu em um processo que culmina num estado secundário de narcisismo, atestado clinicamente pela megalomania. (KAUFMANN)

Se ele se vê como barata de verdade podemos pensar que não se trata de uma simbolização ou metáfora, dado que são mecanismos ausentes na psicose. Há alucinação e delírio, alucinação de se ver pendurado no teto como uma barata, por exemplo, de ver seu corpo como o desse inseto, e o delírio em toda a construção, de se metamorfosear como barata. O delírio, assim como uma formação de sintoma seria para um neurótico, é uma tentativa de se haver com algo doloroso, inexplicável, algo mal resolvido, uma tentativa de solução que encobre o que há na base dele. No caso, delirar essa transformação de ser humano em barata poderia nos levar a pensar no como Gregor se sente, ou se vê, como algo, ou alguém que nada de bom traz, um ser desprezível e asqueroso, um inseto que, culturalmente, tem essas características. Sua família não o quer, ele não quer incomoda-la. Sua vida é tão vazia, sem sentido, que ele pode mesmo ser um inseto que ninguém sentirá sua falta, melhor mesmo ser barata.

Se o narcisismo é o “complemento libidinal do egoísmo do instinto de preservação, que, em certa medida pode justificavelmente ser atribuído a toda criatura viva” (FREUD 1914) – para ele sobreviver precisa ser uma barata? Um ser rastejante, que causa desgosto e nojo aos outros? Talvez. De qualquer forma, foi a saída encontrada por Gregor para poder lidar com sua vida. Mesmo que haja um desligamento dela mesma. Foi o que ele achou como possível como mecanismo defensivo de ação contra a sexualidade, a rejeição (foraclusão) do nome do pai, da castração.  Acabou por sobreinvestir em seu eu, apresentando então esses mecanismos característicos da psicose, o delírio e a alucinação.  

Ao final sua transformação é tão completa que sua humanidade some, se desvai, e ele se transforma num ser somente constituído de instintos. Ele já não é mais capaz de viver como um humano, já que não fala, não se alimenta como tal, não anda, e não tem capacidades físicas, orgânicas e cognitivas humanas, até que seu pensamento passa a ser o de um inseto totalmente.

Podemos nos dar a liberdade de fazer um paralelo do sentimento de Gregor e o filme “Parasita” que ganhou o Oscar nesse ano. São pessoas que conseguem viver na invisibilidade, rastejando. Gregor, na verdade, era quem ajudava, e muito, no orçamento familiar mas, por algum motivo, ele provavelmente se via como um ser desprezível, que não somava. Que solidão absurda é essa que leva esse personagem a essa construção, uma tristeza sem laço? Sem nome, sem simbolização, sem sentido, a ponto de ter que ser construída essa elaborada metamorfose delirante identificatória com a barata.

Talvez uma fuga da realidade chata, dura, repetitiva. Sem dúvida uma cisão. Sendo barata ele não precisa de nada disso, toda essa responsabilidade pelo seu existir cai por terra. Ele não pode mais, enquanto barata, cumprir com  suas funções e sua vida, tão insignificante para ele mesmo. Não há mais compromisso com ninguém, não há mais laço. Na incapacidade de elaborar o sofrimento, a angústia, numa metamorfose ele simplesmente se anula e deixa de existir como pessoa. Nessa construção delirante, seguindo a premissa de que tudo foi um delírio e alucinação, sua questão está resolvida, mesmo que de maneira irreal, ela é canalizada. O delírio entra como o retorno do não simbolizável – um pedaço do eu que foi colocado para fora e que deveria estar internamente representado. Na falta de simbolização entra o delírio, de ser uma barata.

A psicose se caracteriza no sujeito como um corpo sem contorno, é um corpo psíquico incompleto. Uma necessidade desse psicótico, ou característica dele, de ter algo que se inscreve corporalmente. Sua psique não é capaz de lidar com tudo de forma mais saudável. No caso dessa metamorfose houve uma transformação a nível corporal.

Tive uma paciente há muito tempo, psicótica, que me dizia ter o diagnostico de bipolaridade. A historia que contava era de que passou a ser bipolar durante sua estadia na escola de freiras e que ao cair e bater a cabeça numa pedra havia sangrado muito (a ponto de ter que amarrar sua cabeça com sua camiseta) e feito um buraco, o que a fez começar a sofrer desse transtorno. Soube depois que ela nunca tinha estudado em escola de freiras e que isso não tinha acontecido. Ela morava com a mãe, que a maltratava muito, até que um dia bateu-lhe na cabeça com uma panela, ferindo-a gravemente e por isso ela tinha sido encaminhada a assistência social. Era uma construção delirante de sua história.  O psicótico cria essas realidades paralelas a fim de se organizar. Gregor precisou ser barata para lidar com seu mundo.

É uma historia que traz uma solução em sentido, há uma explicação e não apenas um vazio, um real. Ele retorna mas de forma mais organizada, mesmo que em uma construção de delírio. Tirar isso é a morte, é jogar a pessoa no vazio total. O delírio preenche esse vazio. Querer explicar, negar, desconstruir, são atos de neuróticos, e psicóticos não são neuróticos, e nunca serão, portanto é com a leitura deles, no seu mundo, no seu enquadre que devemos trabalhar. Afinal, todos os sujeitos sempre estarão em busca de aplacar seu sofrimento, seja real, psíquico, verdade ou não. Neuróticos e psicóticos sempre buscarão meios de resolver seu “imbróglio” psíquico, seja em um psiquismo considerado mais normal, seja num psiquismo mais comprometido aos olhos da sociedade neurótica normativa. Se para Gregor, seguindo nessa leitura de que é psicótico e sua metamorfose um delírio, sua solução foi delirar que transformou-se em barata, deixemos ele viver assim, mesmo que ao final da história seu destino final tenha sido a morte antecipada.

Concluindo, talvez minha própria dissertação seja um delírio, uma forma de dar um sentido, uma tentativa delirante mesmo. O incabível e o inexplicável é algo que a nós, neuróticos, incomoda. Estamos sempre tentando dar um sentido as coisas, aos sofrimentos, a nossa vivencia e ao nosso redor. Talvez isso tudo tenha sido nada mais do que apenas uma fantasia  de Kafka. Mas a necessidade de explicar um ser humano que se transforma em barata talvez tenha neurótica e sintomaticamente me feito enveredar pelo caminho do explicar psicanaliticamente o personagem Gregor, partindo de uma premissa, que na verdade é um enquadre: trata-se de um psicótico que se identificou (algo que os neuróticos fazem em sua constituição como sujeito, aí uma neurotização minha de Gregor) com uma barata, em um delírio, sendo sua alucinação o fato de se ver de fato no corpo desse inseto, que pouco a pouco foi sendo transformado a ponto de nada humano mais sobrar. O corpo de barata, a descrição de suas partes, sua barriga, suas patas, sua voz mesmo (ou som, melhor dizendo) pode ser uma tentativa mesma de dar um contorno a esse corpo despedaçado característico na psicose.

Como na condução analítica com um psicótico, que devemos escutar sua realidade como ela mesma, sem procurar metáforas, simbolização e permanecer no seu discurso da certeza, do inquestionável, ao ler “A Metamorfose” talvez fosse muito mais interessante faze-lo dessa forma, sem questionamentos. Fica fantástico, diferente, mas interessante. É entrar nesse mundo kafkaniano de Gregor (colocar sobrenome), sem neuroticamente tentar analisa-lo mas apenas saboreá-lo. Assim como os delírios, que ao mesmo tempo são criações irreais para os demais, mas que amarram de certa forma, criando uma representação (mesmo que “maluca”) que aplaca, uma solução para uma libido que não foi representada.

Interessante pensar também, já que trata-se de uma metamorfose, por que transformar-se em barata, por que não metamorfosear-se em borboleta, por exemplo? Mas para isso teríamos que criar novas hipóteses e analisar mais a fundo ainda o personagem, para entender o porquê dessa escolha. No momento ficarei apenas com a ideia de que trata-se de um psicótico que fez essa construção delirante e viveu essa metamorfose em barata.

Termino com a letra da musica de Raul Seixas “A Metamorfose Ambulante”, artista que conseguia sublimar seus pensamentos profundos, angustias, desejos…  e inconsciente através da sua produção. Talvez como o próprio Kafka nessa sua obra. Mas isso fica para outro trabalho.

Prefiro ser essa metamorfose ambulante
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

Eu quero dizer agora o oposto do que eu disse antes
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

Sobre o que é o amor
Sobre que eu nem sei quem sou
Se hoje eu sou estrela amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio amanhã lhe tenho amor
Lhe tenho amor
Lhe tenho horror
Lhe faço amor
Eu sou um ator

É chato chegar a um objetivo num instante
Eu quero viver nessa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

Sobre o que é o amor
Sobre o que eu nem sei quem sou
Se hoje eu sou estrela amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio amanhã lhe tenho amor
Lhe tenho amor
Lhe tenho horror
Lhe faço amor
Eu sou um ator

Eu vou lhes dizer aquilo tudo que eu lhe disse antes
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha, velha, velha, velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha, velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha, velha, velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

(Raul Seixas – Metamorfose Ambulante)

Referências bibliográficas:

FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar (1914). Vol.XII. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006.

FREUD, S. Sobre o Narcisismo: Uma introdução  (1914). Vol.XIV. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006.

FREUD, S. Três ensaios sobre a sexualidade. (1901-1905). Vol.VII. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006.

KAUFMANN, P. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise: O Legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1996.

LAPLANCHE E PONTALIS. Vocabulário da Psicanalise. São Paulo:Martins Editora Livraria Ltda, 2012

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