O Sintoma chora enquanto o fantasma ri (Julieta Al Makul Durce)

Uma frase bonita, poética, muito interessante, que diz muito e conduz a pensar. Todos os sujeitos, castrados, atravessados pela falta, funcionam na dicotomia sintoma, desejo, fantasia. Deparei-me com essa inquietação antiga que resolvi revisitar: enquanto o fantasma ri, o sintoma chora. No percurso recente decidi-me por novamente me questionar a respeito. O que é o fantasma, ou fantasia do sujeito, na perspectiva lacaniana. Como acessá-lo, como reconhecê-lo. Qual a sua importância na análise. Qual sua relação com o sintoma. O fantasma é inerente ao sujeito, assim como seus sintomas.

Através da conceituação de sintoma, seus modos de operar, podemos perceber como ele nos apontará o fantasma do sujeito. Para isso resolvi me aprofundar no que é o sintoma e o fantasma, para conseguir entender que enquanto o sintoma chora, sofre, o fantasma ri. E, se o fantasma pode rir enquanto o sintoma não chorar.

O sintoma chora pela falta, pela dor. O fantasma ri por manter a mesma identidade, o mesmo lugar, ele reafirma. Ambos são formações do inconsciente, e fora do controle do sujeito. Manifestações de fatos, sentimentos, histórias do sujeito, saberes ignorados, guardados no seu inconsciente. Como relacioná-los? Por que o fantasma ri enquanto o sintoma chora? Qual o significado desta colocação?

Comecemos. O que é um sintoma? Em psicanálise ele não se resume somente a um distúrbio que causa sofrimento, ele é, acima de tudo, um mal-estar que se impõe a nós, além de nós, e nos interpela. Um mal-estar que descrevemos com palavras singulares e metáforas inesperadas. Um depositário, a solução para o sujeito, a chave do sujeito. É efeito de sujeito. Ele vem “no lugar de”. Seu benefício secundário é manter-se onde o sujeito sabe ser. Mas o que quer que seja, ele é, antes de mais nada, um ato involuntário, produzido além de qualquer saber consciente, além de qualquer intencionalidade. Uma manifestação do inconsciente. E o inconsciente é, na verdade, um saber que o sujeito veicula, mas ignora. Ele é o que cada um tem de mais particular, e também o de mais real, este que é uma solução de compromisso do sujeito, um mecanismo de defesa, uma produção única e singular.

O sintoma é um acontecimento sempre acompanhado de busca de interpretação de sua causa pelo paciente. É o que, normalmente, conduz o sujeito a análise, pois surge o questionamento de porque está sofrendo. Ele chama e inclui a presença do analista, que se transforma progressiva e imperceptivelmente no destinatário do sintoma. Quanto mais o analisando discursa sobre ele, na busca de uma explicação, mais o analista, aquele que escuta, transforma-se no Outro (grande outro) de seu sintoma. Logo, na análise sua principal característica é que o psicanalista passa a fazer parte dele: quando sofro, lembro-me do meu analista, e quando penso nele, o que me volta é a lembrança de meu sofrimento, a ponto de não saber se ele não é uma das causas disso. Essa última colocação é a que permite a transferência analítica e distingue a psicanálise de qualquer psicoterapia. O analista assume inicialmente o lugar destinatário do sintoma, e posteriormente o de causa de.

Quando o sujeito busca a análise, ele sempre o faz pela via sintomal. Ele vai busca uma análise porque algo o incomoda, faz sofrer. Espera-se dele um relato de sua infelicidade, ou de insatisfação. Em sua fala, em seu discurso pode-se, no entanto, perceber que há uma harmonia, um arranjo que faz existir uma satisfação ali mesmo onde o sujeito se queixa de dor. Não é de se estranhar que a psicanálise tenha surgido do estudo da neurose e dos sintomas.

Podemos analisar o sintoma sob outra vertente também, a de que ele possui duas faces: a de signo e a de significante. Para Lacan, um signo é aquilo que representa algo para alguém, o que explica essa vertente do sintoma, enquanto esse representa algo para aquele que sofre e às vezes para quem o escuta. O paciente o explica, e imediatamente coloca o analista no papel de ser ao mesmo tempo, o Outro do sintoma e a causa do sintoma; aquele que sabe de sua dor, que tem o conhecimento a seu respeito.

A face de significante do sintoma é deveras importante pois nos apresenta a estrutura do inconsciente do sujeito. Ela aponta para um sofrimento imposto, fora da vontade do paciente, que, ao contrário do signo, não tem sentido único. O significante é a expressão involuntária de um ser falante, executado sem intencionalidade e saber consciente. Ele é desprovido de sentido, não significa nada. O significante só é se for ligado a um conjunto de significantes: é UM entre outros com os quais se articula. Segundo Lacan, o significante só é significante para outros significantes. Ele depende de uma cadeia. Portanto, o sintoma é um significante, se considerarmos como um acontecimento que não dominamos nem a causa, nem o sentido, nem a repetição. Ou seja, todos os sintomas são distintos e nunca se repetem idênticos, mas do ponto de vista de seu valor formal e significante, todos são idênticos. Enquanto um acontecimento involuntário, desprovido de sentido e pronto a se repetir, não há o domínio nem da causa, nem do sentido, nem da repetição. O sintoma enquanto significante é questionador, e em última instância pertinente, pois nos informa sobre fatos ignorados de nossa história que até então não tínhamos conhecimento. Ele é do sujeito, do Um.

O sintoma pode manifestar-se tão oportunamente que, apesar de penoso, surge como uma peça faltante na vida da pessoa. Tomar o sofrimento do sintoma pelo ângulo da causa é fazer dele um signo, enquanto surpreender-se com a felicidade do que ele revela de um saber ignorado, é reconhecê-lo como significante.

Quando o sintoma surge como esclarecedor, o sujeito passa a preocupar-se em interrogá-lo não mais como signo, não é o porquê que o preocupa, e sim o “como”. E o “como” fala do fantasma. Como se organizam os acontecimentos de sua vida? Qual é a ordem da repetição? Daí sua importância, suas características e conceitos, dado que na repetição o fantasma aparece, apontando para o modo do sujeito conduzir sua vida, viver suas experiências. A fantasia, ou o fantasma, exprime-se não somente no relato ou de um ato que se repete e que de modo geral permanece inesquecível, mas sim nas sessões analíticas e ao longo da vida do sujeito. O fantasma é a forma de gozo do sujeito, pulsão, no sentido de restituir o objeto perdido, a completude, um gozo fálico, na procura desse falo que foi perdido para sempre. Através da linguagem o sujeito quer encontrar essa completude, na ignorância de que jamais o objeto que a traria será encontrado. É uma eterna busca, movida pelo desejo, esse desconhecido.

Lacan inclui o gozo – através da vertente do fantasma – na constituição do sujeito. Inicialmente, o gozo, é apenas uma miragem, uma articulação com um resíduo imaginário da castração, representado pelo objeto a, esse perdido para sempre. O campo da fala e da linguagem, tal como se desenrolam na experiência analítica, contribuem para percebe-lo como objeto causa de desejo, e não como objeto que dê conta de solucionar e acabar com a falta. Somos e seremos faltantes para sempre. A matriz do sofrimento é justamente essa, a posição subjetiva que impede a realização do desejo, a interdição do encontro com o objeto a enquanto aquele que o realizaria. E o fantasma ri da impotência desse encontro, na perpetuação desse gozo, na manutenção do sintoma.

O desejo endereça o objeto, que é sempre contornado, pois o objeto pulsional já denuncia a impossibilidade de satisfação. O percurso que o sujeito faz no seu endereçamento ao objeto é o ponto central na psicanálise. A reiteração da busca escreve sua própria história, e a fantasia plasma o modo fixo de o sujeito obter satisfação. Logo, o fantasma é uma maneira de gozar, é a estrutura erigida em torno dele. Ele aparece como esta construção que indica a maneira singular através da qual cada um de nós procura determinar um caminho em direção ao gozo. Para Lacan, o desejo é desprovido de todo procedimento natural de objetificação, o desejo é desejo de nada que possa ser nomeado. Não existe objeto que dê conta do desejo. O fantasma é o único procedimento disponível ao sujeito para a objetificação do seu desejo. Ele é a sustentação do desejo ou este lugar de referência através do qual o desejo aprendera a situar-se. E é ele que nos move, essa busca incessante de algo que não sabemos ao certo, que não conhecemos profundamente, mas que é o que buscamos eternamente satisfazê-lo.

Definido o fantasma desta forma, Lacan tentava demonstrar que sua verdadeira função consistira em ser uma barreira de defesa contra a angústia produzida pelo inominável do desejo. Para Freud, o movimento do desejo era coordenado pela repetição alucinatória de experiências primeiras de satisfação e, através deste processo de repetição, o desejo procuraria reencontrar um objeto perdido ligado às primeiras experiências de satisfação. Primeiramente, Lacan notou que, se o movimento do desejo consistia em tentar reencontrar um algo perdido, então deveria tratar-se, na verdade, da relação entre o sujeito e tais objetos. O suporte do desejo, portanto é fixado nesse objeto para sempre perdido, que surge através da castração e o objeto a, o objeto causa do desejo.

Segundo ele, é este tipo de relação que será posto em cena nas representações imaginárias do fantasma e formalizado no matema do fantasma $àa, onde o sujeito castrado $ está sempre interditado ao objeto a. A fórmula lacaniana do fantasma $àa  relaciona a existência do sujeito ($) à perda da coisa (a), o que a teoria também refere como castração. O que nos explica também porque o objeto a é presença de um vazio de objeto empírico, pois ele nada mais é do que a derivação de uma forma relacional produzida pelas primeiras experiências de satisfação. Daí Lacan ter designado o objeto a como objeto causa do desejo. É com a ajuda dessa relação fantasística que o homem se encontra e situa seu desejo. Daí a importância do fantasma.

Dito de outra forma, o fantasma é a fantasia fundamental: o modo de gozo do sujeito, que é a própria pulsão. O objeto a é real enquanto condensador de gozo pulsional. A fantasia é um meio de alcançar a completude, imaginária, perdida na castração, o vivido, a experiência, o objeto é a tentativa de representar,  é um endereçam[CA1] ento. Lacan pode assim afirmar que a realidade própria ao sujeito é fundamentalmente fantasmática. O fantasma é a Verdade do sujeito. A realidade seria apenas uma vestimenta, o resultante de uma operação da estrutura lógica do fantasma. O sujeito não tem lugar, ele desliza com o significante, já a fantasia o fixa em um lugar peculiar, dá nome ao sujeito, através da repetição própria ao fantasma.

O objeto a, central na pulsão, que é sempre um resto, pelo fantasma direciona ao objeto na ilusão de satisfação, que nunca é completa, é sempre parcial, deixando novamente um resto. Por isso o fantasma é uma função de a, e mantém o sujeito na repetição. Quando identificamos o objeto a, objeto causa do desejo, podemos mudar esse ciclo de repetição, daí a sua importante busca. O objeto a encontra sua expressão clínica, essencialmente na fantasia. Segundo J. D. Nasio, “Se você quiser conhecer o objeto a numa dadaseqüencia de análise, comece por buscar a fantasia. Pergunte a si mesmo qual é a fantasia de seu paciente nessa fase da análise, e você terá delimitado o lugar do objeto a.” O fantasma é uma operação do objeto a, que é o suporte do desejo, e que está sempre ancorado numa fantasia inconsciente.

O acesso ao fantasma é possível quando há um sintoma, (também via outras formações do inconsciente, como sonhos, chistes etc…). Com o grito do sintoma podemos começar a identificar o fantasma e apontar a pulsão, o gozo do sujeito, sua repetição. Para atingir sua fantasia iniciamos pelo sintoma, que chora. O fantasma indicará seu modo.

O sujeito do inconsciente, foco central da psicanálise, é complexo e correlacionado, como num nó borromeano. Tudo se relaciona e o papel do analista é ajudá-lo com essas amarrações. Caso contrário, sem essa operação seu sintoma continuará a chorar enquanto seu fantasma continuará a rir, a gozar.

E enquanto isso, o sintoma chora e o fantasma ri.

“Homem! Tua vida inteira como uma ampulheta será sempre desvirada outra vez e sempre se escoará outra vez – um grande minuto de tempo no intervalo, até que todas as condições, a partir do que vieste a ser, se reúnam outra vez no curso circular do mundo e então encontrarás cada dor e cada prazer amigo ou inimigo, esperança e cada erro e cada folha de grama e cada raio de sol outra vez.” Nietzsche 1881

Referências bibliográficas:

FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar (1914). Vol.XII. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006.

KAUFMANN, P. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise: O Legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1996.

LACAN, J. Meus Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

NASIO, J. D. 5 Lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1993.


 [CA1]Interessante, mas poderia desenvolver mais

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