Lina Alvares
A dedução de Watson
(autoria desconhecida)
“Sherlock Holmes e Dr. Watson vão acampar. Após um bom jantar e uma garrafa de vinho, entram nos sacos de dormir e caem no sono. Algumas horas depois, Holmes acorda e sacode o amigo:
– Watson, olhe para o céu estrelado. O que você deduz disso?
Depois de ponderar um pouco, Watson diz:
– Bem, astronomicamente, estimo que existam milhões de galáxias e potencialmente bilhões de planetas. Astrologicamente, posso dizer que Saturno está em Câncer. Teologicamente, eu creio que Deus e o universo são infinitos. Também dá para supor, pela posição das estrelas, que são cerca de 3h15 da madrugada… O que você me diz, Holmes?
Sherlock responde: Elementar, meu caro Watson. Roubaram a nossa barraca!”
(In www.universodohumor.com.br/piadaseoutrasdeducaodewatson.html.Acesso em 17/11/2011)
O autor se utiliza aqui do personagem de ficção da literatura britânica, Sherlock Holmes, criado pelo médico e escritor Arthur Conan Doyle. Holmes é um investigador do final do século XIX e início do século XX que ficou famoso por utilizar, na resolução dos seus mistérios, o método científico e a lógica dedutiva. Este personagem teve suas histórias relatadas pelo seu colega de quarto e fiel escudeiro Dr. Watson, que várias vezes ficou surpreso com o rápido raciocínio de Holmes.
O chiste é a mais social de todas as funções mentais a objetivar a produção do prazer. Sua engenhosidade verbal, sua agressividade, seu lado político, seus aspectos mais bobos, seu caráter surreal, a complexidade dos jogos de palavras, o fato de ridicularizarem o poder, etc. nos servem como indicadores de que o humor propicia saúde psíquica.
E ainda, se o humor consiste numa forma inteligente de lidar com a dor e o sofrimento e ainda tirar prazer disto, torna o sujeito capaz de rir de si mesmo e mostra que toda verdade é incompleta, que o ser humano é insuficiente e que quando a vida mostra suas imperfeições e falhas, ainda assim vale a pena uma boa risada.
No texto Os chistes e sua relação com o inconsciente, publicado em 1905, Freud aborda os chistes e seus mecanismos de condensação e deslocamento, associando-os ao sonho. Reconhecia, dessa maneira, no chiste, a textura própria da formação do inconsciente.
Freud chamou a atenção para a importância da linguagem ressaltando um caráter essencial, aquele que se passa no jogo das palavras, no trocadilho, e que termina por constituir o dito espirituoso. Seu interesse estava na referência interna da palavra. É o sentido que representa o sujeito do inconsciente para outra representação.
Segundo Roudinesco (1998, p. 112), Freud tinha paixão por aforismos, trocadilhos e anedotas judaicas. Era dotado de um senso de humor corrosivo e adorava as histórias que exprimiam, por meio do riso, os principais problemas da comunidade judaica da Europa Central, confrontada com o antissemitismo.
Em múltiplas ocasiões, Freud se serviu do chiste tanto para zombar de si mesmo quanto para expressar a seu círculo o quanto podia rir das realidades sombrias, apoiando-se em histórias do gueto para estabelecer um elo entre o mecanismo do sonho e as diversas modalidades do riso. Fossem quais fossem as suas modalidades, o chiste era a seu ver uma expressão do inconsciente, identificável em todos os indivíduos. (ibid., p. 112)
Após a Interpretação dos sonhos e a Psicopatologia da vida cotidiana, Os Chistes e sua relação com o inconsciente foi a terceira grande obra de Freud dedicada a, segundo Mezan (2005, p. 134), investigar a lógica do inconsciente, mostrando que ela está presente não apenas nos sintomas e sonhos, mas ainda na vida “normal” – atos falhos e piadas.
O interesse de Freud pelos jogos de palavras decorre do peso que tem a linguagem no tratamento analítico: é por meio dela, que tanto expressa quanto oculta ou deforma o pensamento que se pode ter acesso ao inconsciente. (ibid., p. 135)
Falcão (2002, p.1) aponta que nos chistes é sublinhado o jogo de palavras, o aparente nonsense, a destituição de sentido remetendo, a porteriori, a uma nova representação para o sujeito. Assim, a atribuição de um sentido a um comentário e a descoberta nele de uma verdade, até então inconsciente, são aspectos do chiste em seu caráter revelador do “impossível”, do inacessível pelas vias comuns do pensamento.
O chiste caracteriza-se, antes de tudo, pelo exercício da função lúdica da linguagem, cujo primeiro estádio seria a brincadeira infantil e o segundo, o gracejo.
Dentre os diferentes chistes, aponta Roudinesco (1998, p. 113), Freud distingue os inofensivos dos tendenciosos, tendo estes por móbil a agressividade, a obscenidade ou o cinismo. Quando atingem seu objetivo, os chistes ajudam a suportar os desejos recalcados, fornecendo-lhes um modo de expressão socialmente aceitável. Além desses, segundo Freud, existe um quarto móbil, mais terrível que os outros três: o ceticismo. Os chistes desse registro empregam o contrassenso e atacam não uma pessoa ou uma instituição, mas a certeza do juízo. Mentem quando dizem a verdade e dizem a verdade através da mentira.
O chiste promove um desconcerto, sucedido por um esclarecimento que ultrapassa seu próprio conteúdo, ensejando um passo a mais.
Freud (1905/2006, p. 135) nos chama atenção para o fato de parecer supérfluo falar sobre os motivos dos chistes já que o objetivo de conseguir prazer deve ser reconhecido como motivo suficiente de sua elaboração.
O chiste não se realiza sozinho, aponta Falcão (2002, p. 1), e só se conclui com a comunicação da ideia a alguém. Na própria estruturação do chiste encontraríamos três pessoas: o autor, aquele a quem o chiste vem; a segunda pessoa sobre quem o chiste versa ou seu objeto e a terceira pessoa, aquela que o escuta.
Apesar do prazer envolvido em sua elaboração, a própria pessoa a quem ocorre o chiste não consegue rir dele, ela prescinde da pessoa que foi objeto do chiste, mas não prescinde de alguém para escutá-lo. É exatamente a terceira pessoa a quem é comunicado o resultado do chiste. A terceira pessoa avalia a “tarefa da elaboração do chiste”, incidindo em uma espécie de julgamento dos propósitos dele, portanto, é preciso que exista nela “benevolência” e neutralidade, “ausência de qualquer fator” que possa inibir sua comunicação. O chiste exige uma plateia própria. (ibid., p. 1)
Enquanto, no que denominamos cômico, não há necessidade da comunicação, no chiste há uma necessidade de contá-lo a alguém. Freud (1905/206, p. 138) aponta que o processo cômico se satisfaz com duas pessoas: o eu e a pessoa que é objeto; uma terceira pessoa pode intervir, mas não é essencial. Já o chiste, nos diz Mezan (2005, p. 144) se constitui como um “processo social”, isto é, é feito para ser contado, implicando, portanto o destinatário num circuito que só se completa quando ele ri.
O ouvinte, segundo Falcão (2002, p. 1) quando escuta levanta semelhante inibição a que a primeira pessoa superou para elaborá-lo, é isto que provoca o riso. A colaboração da terceira pessoa, do ouvinte, faz parte da realização do chiste. Presenteada com o chiste, ela constitui a possibilidade de emergir o prazer. O processo se passa então entre a primeira pessoa e a terceira. A atenção apanhada desprevenida somada à descarga inibitória liberada se completa a partir da surpresa do chiste.
Freud (1905/2006, p. 138) aponta a possibilidade de que a necessidade de comunicar o chiste a alguém esteja, de algum modo, conectada à gargalhada que, negada ao autor, é manifestada por outra pessoa. O autor atingiria o riso impossível a partir das impressões causadas em quem faz rir. Ele utiliza a terceira pessoa e se reúne a ela para suscitar seu próprio riso.
Encontram-se no riso as condições sob as quais uma soma de energia psíquica, usada até então para a catexia, encontra livre descarga. E, como nos diz Freud (ibid., p. 142), já que o riso – não todo o riso, é verdade, mas certamente o riso originário do chiste – é uma indicação de prazer, inclinamo-nos por relacionar este prazer com a suspensão da catexia que fora previamente apresentada.
No ouvinte uma despesa catéxica foi suspensa e descarregada sendo o prazer do chiste adquirido com pequena despesa de sua parte. Pode-se dizer que o chiste lhe é presenteado. Ele ri com a cota de energia psíquica liberada pela suspensão da catexia inibitória; podíamos dizer que seu riso esgota essa cota (ibid., p. 143)
Algum grau de benevolência ou uma espécie de neutralidade, a ausência de qualquer fator que pudesse provocar sentimentos opostos ao propósito do chiste, constituem a condição indispensável para que uma terceira pessoa colabore na complementação do processo de sua realização. É essencial que esta pessoa esteja em suficiente acordo psíquico com a primeira pessoa quanto a possuir as mesmas inibições internas, superadas nesta última pela elaboração do chiste. (ibid., p. 140, 144)
Na primeira pessoa de um chiste, (ibid., p. 143), executa-se sua elaboração, à qual deve corresponder certa cota de despesa psíquica. Assim a primeira pessoa produz a força que suspende a inibição. Isso, sem dúvida, resulta em prazer para si, já que o prazer preliminar obtido pela elaboração do chiste toma a seu cargo a suspensão de outras inibições; mas a despesa na elaboração do chiste é, em qualquer caso, deduzida da produção (do prazer) resultante da suspensão da inibição – uma despesa que é idêntica à evitada pelo ouvinte do chiste.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FALCÃO, A. L. B. Sobre os chistes. Trabalho apresentado no Simpósio de Brasília/DF da Intersecção Psicanalítica em 2002.
Disponível em www.interseccaopsicanalitica.com.br/art081.htm Acessado em 17/11/2011
FREUD, S. (1905). Os chistes e sua relação com o inconsciente in Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006. Vol. VIII.
MEZAN, R. A ilha dos tesouros in SLAZVUTKY, A. & KUPPERMAN, D. Seria trágico se não fosse cômico – Humor e Psicanálise. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2005.
ROUDINESCO, E. & PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.