Existe mentira saudável? Inofensiva?

Pode-se mentir para uma criança? Não, não pode. Mas e aí? Como fazer para ela não se machucar? Podemos falar uma “mentirinha”? Difícil saber o limite, né? Qual o termômetro?

Vamos lá. Os pais, as figuras de autoridade são exemplo, espelho para as crianças, e não queremos criar mentirosos, certo? Se uma criança vê seu pai, sua mãe, contando mentira, mesmo que pequena “diga que não estou em casa” (quando está), por exemplo, a mensagem que ela recebe é: ok, posso mentir de vez em quando. Nesse caso, quando ela disser que tomou banho, quando não o fez, ou que não foi ela que quebrou o enfeite, quando foi realmente ela, como repreendê-la? Ela está seguindo um modelo aprendido pela observação. Portanto, a resposta é: nunca se deve mentir. Mentir é proibido (ao menos, na sua frente, nesse caso). Se uma criança cresce em um ambiente onde haja muita mentira, onde o não falar a verdade é sempre uma constante, ela vai crescer em um ambiente inseguro. Alguma hora perceberá que o que lhe contam é mentira e passará a sentir insegurança. “Como assim? O mundo em que eu acreditava, as pessoas em quem eu acreditava me enganam? Como lidar com isso? E quem, no que, acreditar? O mundo é uma grande mentira!” Essa é uma conclusão lógica, com base na sua formação infantil. Portanto, novamente, não podemos mentir. Exemplificando, ao dizer para uma criança, uma mentira normal, corriqueira, comum, quando ela vai tomar uma vacina, que não será nada, que não irá doer… mas dói! Como ela vai acreditar quando sua mãe lhe disser que ao passar um remédio no machucado não irá arder? Logo, não se deve mentir.

Mas então como fazer? No caso da vacina, pegando o exemplo, o ideal é dizer: sim, talvez doa um pouquinho, será uma picada, mas que esta é necessária, importante, e que passará logo. Pronto, não houve mentira. E dessa forma, a criança perceberá que seus pais não a enganam e que na vida há momentos desagradáveis, mas que temos que passar por eles. Cria-se um ambiente de confiança, de segurança.

Consistência também é fundamental. Nunca passar dupla mensagem. Explicar sempre! Como uma criança consegue, por exemplo, entender que sua mãe, que acabou de falar que está “muito cansada para brincar”, ao receber o telefonema de uma amiga saia com ela para jantar? Novamente, conversando, sendo sincera. Dizendo que naquele momento sairá com a amiga, mas que em outro momento brincará com seu filho, que ele é tão importante quando a outra pessoa. Melhor ainda, dizer que naquela hora não está com vontade de brincar, mas não que está cansada. Dessa forma, a criança perceberá que sua mãe lhe diz a verdade, que ela também tem vontades, momentos, e, sobretudo, que é sincera. Outra palavra importante, sinceridade.

Mas muito cuidado nessa hora, sinceridade demais pode ser acima do que a criança tem condições de lidar. Como no caso de morte ou doença na família, por exemplo. Não há necessidade de dizer com todos os detalhes o que está acontecendo com a pessoa enferma. Deve-se usar do bom senso e não sobrecarregá-la com informações em demasia, que lhe farão sofrer, imaginar sobre aquilo que não tem compreensão ainda para entender. Nesse caso, novamente, não é mentir, mas aliviar. Entra a linguagem, que é fundamental. Respeitar a maturidade da criança, essencial. É ter, ou criar habilidade de comunicar o recado, mas no nível da criança. É como no caso da criança que pergunta: “Mãe, o que é sexo?” Explicar exatamente do que se trata para uma criança de dois anos? Não é bem o caso. Talvez responder que sexo é feminino e masculino, que meninas são do sexo feminino e meninos do sexo masculino seja suficiente! Não há necessidade de ir além.

A mentira passa também, por aqueles momentos em que ameaçamos fazer algo caso a criança não obedeça. Se ameaçar, cumpra. Ou melhor, nunca diga que fará uma coisa que não irá fazer. É uma forma de engano, mesmo que ao contrário. Ela irá facilmente perceber que seu pai, sua mãe, diz que fará algo mas não o faz. O mesmo raciocínio serve para promessas de premiação, ou de presentes. Não prometa que dará algo que não irá dar. A criança fica esperando. E se sente enganada quando não acontece. São faces da mesma coisa, baseadas em mentirinhas que não são percebidas pelo adulto. Não há mentiras brandas, incólumes.

Mas e quanto à fantasia? E quanto a dizer que Papai Noel existe? Nesse caso, deve-se entender que no mundo da criança existe fantasia. E esta deve existir. Conforme já escrevi há um tempo, em um artigo “Dos contos infantis e as crianças” (http://institutopensi.org.br/blog-saude-infantil/dos-contos-infantis-e-as-criancas/) os mitos, os super-heróis, as fadas, as bruxas, são elementos importantes no desenvolvimento infantil, pois são recursos que a criança utiliza para simbolizar e para ajudá-la a lidar com diversos dilemas em sua vida. Portanto, não se deve tirar isso dela. Deve-se entrar nesse mundo infantil. Mas, novamente, com cautela e bom senso. Tudo tem seu momento. O Natal tem o Papai Noel. Assim como os filmes da Disney tem suas princesas. Mas daí a extrapolar e inventar um mundo onde esses personagens irão surgir a qualquer momento, como a bruxa que irá aparecer caso a criança não coma todo o jantar, há uma grande distância. Mentir é diferente de entrar no mundo da fantasia da criança, o qual tem seu momento e importância.

Na verdade, o fundamental é ver a criança como ela é: não um tolo que possa ser enganado, nem tampouco um pequeno adulto que consegue lidar com tudo, mas um ser humano em desenvolvimento, sobre o qual os adultos têm um papel fundamental. E, fugir da mentira.

Letícia Rangel

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